domingo, maio 17

Da sua natureza

"Sorte nossa que as árvores não gemam e os animais não falem. Imagina se cada vez que se aproximasse uma motossera as árvores começassem a gritar 'Ai, ai, ai!' e aos bois não faltassem argumentos razóaveis para não querem entrar no matadouro. Imagine porcos parlamentando em causa própria, galinhas bem articuladas reivindicando sua participação na renda dos ovos e gritando slogans contra o hábito bárbaro de comê-los, pássaros engaiolados fazendo discursos inflamados pela liberdade. Os únicos bichos que falam são os papagaios, mas até hoje não se tem notícia de um que defendesse os direitos dos outros. O papagaio tem voz, mas não tem consciência de classe.
A vida humana seria mais difícil se não pudessemos colher uma beterraba sem ouvir as lamentações da sua família e insultos do resto da horta. Não deixariamos de comer, claro. Nem beterrabas, nem bois ou galinhas, apesar de seus protestos. Mas o remorso e uma correta noção de prepotência inerente à condição de espécie dominante, fariam parte da nossa dieta. Teríamos uma ideia mais exata da nossa crueldade indispensável, sem a qual não viveríamos. Sorte nossa que os animais e vegetais não tem uma linguagem, quanto mais um discurso organizado. Não os comeríamos com a mesma empáfia se os tivessem. O único consolo deles é que também padecemos de falta de comunicação: ainda não encontramos um jeito de negociar com os germes, convencer os vírus a nos pouparem com retórica e dar remorso em epidemias.
Eu às vezes fico pensando em como seria se os brasileiros falassem. Se protestassem contra o que lhes fazem, se fizerem discursos indignados em todas as filas de matadouros, se cobrassem com veemência uma participação em tudo que produzem para enriquecer os outros, reagissem a todas as mentiras que lhes dizem, reclamassem tudo que lhes foi negado e sonegado e se negassem a continuar sendo devorados, rotineiramente, em silêncio. Não é da sua natureza, eu sei, só estou especulando. Ainda seriam dominados por quem domina a linguagem e, além de tudo, sabe que fala mais alto o que nem boca tem, o dinheiro. Mas pelo menos não os comeriam com a mesma empáfia."
Luís Fernando Veríssimo

Eu sei o texto é tão bom que doí.

Um comentário:

Anônimo disse...

Nusss,
Profundo, tão profundo que tocou o fundo do meu coraçãosinho que já estava esquecido...

Bjus :*
Cloe Stuart